Na tradição da cultura ocidental, o mito do lobisomem descende da tradição clássica greco-romana, segundo a qual, Zeus transformou Lycaon num lobo, por ter tentado enganar o deus dos deuses, com o propósito de o transformar em devorador de carne humana, mas falhou no seu intento. Lycaon, ele mesmo, era um deus ímpio e malévolo. Daí o termo licantropia, maldição divina que pune os transgressores em monstros com características selvagens do lobo e do próprio homem. O lobisomem é estraçalhador, antropófago e contagioso. Homero, na llíada, Platão, na República, e Ovídio, nas Metamorfoses, tratam do assunto, cada qual a seu modo, mas com características semelhantes. Gradualmente, o mito espalhou-se virtualmente por todas as culturas europeias, com intermináveis variantes. Na tradição católica, por exemplo, até os anjos têm o poder de transmutar os corpos humanos. Na famosa afirmação de São Tomás de Aquino, “Omnes angeli, boni et mali, ex-virtute natural, haver potestatem transmutandi corpora nostra”. (Todos os anjos, bons e maus, têm o poder de transmudar nossos corpos). No folclore brasileiro, o mito chegou via Portugal.
Como em tantas culturas, no Brasil, ele é conhecido como um homem maldito que em noites de lua cheia, sai à procura de vítimas, de cujo sangue se alimenta. É o Licantropo caboclo, e no sertão, ele ganhou muitas versões. Modernamente, o mito reapareceu em obras de prosa de ficção e na profusa produção cinematográfica anglo-americana, às vezes com sugestões sexuais implícitas, subjacentes. Na leitura visual de Martins de Porangaba, porém, a concepção erótica do mito multi-milenar passa ao primeiro plano, e é abordado com total exclusividade, sem rodeios nem subterfúgios, livre, sem reservas, um verdadeiro manifesto. Quanto à sua versão plástica, Porangaba está em boa companhia, pois ele é precedido na história da arte pelos afrescos de Pompéia, pela xilograva da alta idade média, e pela obra gráfica de Michelângelo, Dürer, Rembrandt, Rubens, Boucher, Fragonard, Degas, Picasso, e tantos outros mestres. Na obra de todos eles, contudo, o erotismo é apresentado em suas formas tradicionais, realistas. Na leitura de Porangaba, porém, a dimensão erótica humana vem expressa pela inter-relação entre um monstro híbrido, o lobisomem, e uma donzela. Embora fantasiosos e não realistas, estes dois protagonistas são apresentados em versões arquetípicas, impessoais, com foros universais. O lobisomem, da cintura para cima, é um lobo com orelhas altas e abertas, para melhor escutar, e com três grandes dentes afiados, para melhor morder e dilacerar. Da cintura para baixo, ele é um homem, dotado de um pênis de proporções priápicas, descomunais. Por seu lado, a donzela aparece em sua juventude, delicada, leve, recatada, mas sem rosto, sem feições. Ela representa, pois, o feminino universal.
José M. Neistein