Artista

PORANGABA: UM VERDADEIRO CRIADOR

Walmir Ayala

Que me perdoe o artista e seus exegetas, mas me recuso a ler, na pintura libérrima e excelente de Martins de Porangaba, a epopéia lírico/irreverente de Macunaíma.
A não ser ultrapassando o episódio da lenda para tocar no universo da condição humana, o que a pintura de Porangaba ilustra em nível de síntese mitológica. Prefiro perseguir os símbolos, especialmente da infância, nesta pintura madura, das mais maduras que tenho conhecido, e reconhecido, em artista de sua idade. Há os cavalos de carrossel, as noites estreladas, os peixes, os pássaros, os ambientes ambíguos (o dentro e fora), os detalhes de paisagem as fugas, os encontros de amor, o repouso e a exaltação. O real se configura sob a forma de um puzzle desorganizado, e sobre esta desordem Porangaba constrói uma nova ordem muito mais perene: a ordem do labirinto subjacente à lógica tradicional. Como nos sonhos interrompidos, o corpo imagético está aos pedaços e, ao decompor-se, revitaliza a descontinuidade, como um desafio à imaginação e à visão no sentido de recriar mentalmente a fábula. A analogia com o desenho infantil e um certo acento oriental colocam Porangaba na família espiritual de Klee. Também as ressonâncias do cubismo e a aproximação com uma bizarra estrutura musical (me faz lembrar Stravinski) enraízam perfeitamente o artista de Porangaba na pauta fantástica dos detonadores do realismo cujo instinto de formação veio recuperar, em década recente, o prestígio da pintura. Desde o encontro que tive em 1972 com Siron Franco, não me ocorria este hausto de revelação, que a pintura de Porangaba me devolve. Uma coisa é acompanhar a constelação de talentos, em vários níveis, cobrindo espaços potenciais de uma energia criadora latente. Outra coisa é o impacto do verdadeiro criador, cuja raridade nos atropela – Porangaba é um desses. Uma das garantias de sua autenticidade é o período de hibernação do procedimento técnico, a introversão social com que fertilizou seu espaço mental, a quantidade de estudos sobre os quais baseou o estágio atual sem margem de erro. Cada quadro de Porangaba, na exposição que agora realiza na Galeria Paulo Prado, em São Paulo, é uma tabela de acertos, uma estrutura cuidadosamente montada em sua aparente espontaneidade. As dissonâncias da leitura convencional, o estilo sincopado, a pauta brilhante de acordes metálicos, o contraponto de cenas de uma ópera bufa e feérica traduzem esta dimensão cenográfica em termos de um saudável onirismo. A figura humana está presente e dominante, embora nãosublinhe sentimentalmente o suporte. O que sobrepaira é a unidade com que o espectro cromático se completa, a sabedoria com que as formas, em múltiplos detalhes, se encadeiam para completar o instante do mito. Não há ruptura no nível da emoção quando projeta o signo e a cor com que finaliza cada vocábulo visual, de seu discurso, é exatamente concebido sob o prisma de um projeto global.
À inteireza da obra corresponde a inteireza do métier, e isto é domínio exclusivo do verdadeiro artista.